Inversamente proposital – Iom Kipur 5782

Em Rosh Hashaná o ritual do tashlich estipula: jogue pedaços de pão em águas correntes a fim de se livrar das transgressões. Ainda que envolto de significado espiritual, um problema emerge deste ato: a transferência de um dejeto individual, mesmo que simbólico, para um lugar da natureza que pertence a todos. Neste sentido, qual seria a consequência se cada um buscasse se desvencilhar do que lhe incomoda desconsiderando a concepção coletiva tão enfatizada ao recordarmos em Rosh Hashaná  a criação do mundo? O rabino Ed Rosenthal propõe uma reversão do tashlich: ao invés de jogar no mar o que potencializa sujeira, recolher detritos acumulados no mar. Assim, para cumprir a intenção do tashlich de trazer pureza, o ritual é invertido e o ato de jogar é substituído pelo de recolher. Esta inversão do procedimento ajuda na preservação do propósito. É a matemática espiritual que vai do inversamente proporcional ao inversamente proposital (na busca dos propósitos). 

Enquanto a sugestão para o tashlich é recente, a ideia de inversão remonta séculos. O profeta Isaías, cuja mensagem lemos no Iom Kipur, pergunta em tom retórico ‘o que é o jejum senão repartir o pão com o faminto?’ De acordo com o profeta a exacerbada preocupação com o cumprimento da mitsvá do jejum a nível individual seria contrária à intenção deste ato. Para evitar isto há uma inversão na busca do propósito: não pense no que abdica de comer e sim no que deixa de repartir.

O período de Rosh Hashaná e Iom Kipur é de teshuvá, que significa tanto arrependimento quanto resposta. Através do arrependimento encontramos as respostas.  As respostas conferem a certeza de que estamos num rumo correto. Porém, há o risco de modular os caminhos, como se fossem equivocadamente corretos, em função da resposta já estabelecida. Isto não dará margem para novos arrependimentos, pois o erro será descartado pela certeza da resposta anteriormente corroborada. De tempos em tempos é importante inverter e transformar a resposta numa nova pergunta a fim de garantir que o propósito da teshuvá seja preservado. A fé ainda que estabelecida pelas certezas e convicções, requer ser chacoalhada, abalada e invertida para que seu propósito genuíno seja expresso. 

As rezas de Iamim Noraim sugerem que nesta época do ano o destino é escrito e assinado, ao mesmo tempo em que alertam que não há fatalismo sendo possível a inversão do destino através da oração, arrependimento e atos de justiça. Quem sabe o objetivo é criar um tremor para os eventuais desenlaces de nossas vidas a fim de que tentemos inverter os desígnios resgatando os propósitos que a oração, arrependimento e justiça ensejam?

O momento climático é a Neilá, que quer dizer fechamento como se a oportunidade do perdão e do arrependimento se encerrasse. No entanto, este fechamento pode ser constantemente invertido conforme ensina o Midrash: “os portões do arrependimento estão sempre abertos”.  A permanente chance de encontrar os propósitos inverte a imutabilidade do que se diz fechado e abre novas oportunidades. 

Talvez preferíssemos por conforto ou segurança, comodismo ou inércia que os caminhos da existência fossem retilíneos em sequências inalteráveis, um estágio levando ao outro. No entanto, isto seria uma ilusão que geraria decepção diante dos desafios inesperados, potencializaria a frustração pela incapacidade de lidar com o imprevisto e comprometeria a apreciação do encanto do que aparece. Entre um passo e outro, a inversão nos propicia enxergar e, sobretudo, reenxergar os propósitos ao oferecer um renovado ângulo de visão do ano que começa. E de todos os demais anos, se, imbuídos pela busca dos propósitos, continuarmos a inverter de modo inusitado o que antes fora invertido. 

Sérgio Margulies é rabino da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro e presidente do Conselho Rabínico Reformista do Brasil.

 

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