A halachá, a tradição da lei judaica, desempenha um papel na vida religiosa do Judaísmo Reformista?

Alguns dizem “não”. Em sua opinião, a halachá é alheia ao espírito da Reforma, um movimento ancorado no princípio da autonomia pessoal, na liberdade de cada judeu de fazer suas próprias escolhas religiosas. Eles falam da Reforma como um movimento judaico “não-haláchico” ou “pós-haláchico”. Neste texto eu argumento contra essa visão. Creio que a halachá é e sempre foi uma parte essencial da vida religiosa judaica reformista e que a sua importância para nós só aumentará. Para compor esse argumento preciso, porém, tecer alguns comentários sobre o que é halachá e sobre os textos pelos quais ela se expressa.

Devarim0001-AA palavra halachá (הלכה) aparece pela primeira vez na história judaica durante o período dos Sábios (ou “os Rabinos”, aproximadamente 0-500 e.c.). Os Rabinos formavam uma comunidade de estudiosos que acreditavam na idéia de uma “dupla Torá”: Moisés teria recebido duas “Torás”(1) no Sinai. Uma delas, a Torá Escrita, corresponde aos Cinco Livros de Moisés (Pentateuco; Chumash). A outra, a Torá Oral, era (como o nome indica) transmitida oralmente de professor para estudante ao longo de muitas gerações. Outras seitas judaicas rejeitaram esta doutrina. Eles sustentavam que a “Torá Oral” não era nada mais do que uma coleção de tradições legais que os Rabinos procuravam dotar de santidade chamando-a de uma forma de “Torá”.

Com o tempo, como as outras seitas desapareceram ou se separaram do povo judeu, a compreensão rabínica da Torá prevaleceu. Hoje, praticamente todas as formas de judaísmo – incluindo, como afirmo, a Reforma ou Judaísmo Progressista – são descendentes intelectuais e espirituais dos Rabinos e de sua religião. A Torá Oral (que, devido ao seu imenso volume, foi finalmente vertida para um formato escrito) continha muitas leis que suplementavam, expandiam, modificavam ou adicionavam as mitsvot (mandamentos) da Torá Escrita. Cada uma dessas leis era chamada halachá (plural: halachot). Estes halachot formam a base da Mishná, um livro que se apresenta como um código da Torá Oral.

A Mishná, por sua vez, é o documento fundamental do Talmud (ou “Talmuds” – pois há dois deles, um que surgiu na Babilônia e o outro em Erets Israel), uma maciça coleção de discussão, debate e profundas análises lógicas dos assuntos levantados pela Mishná e por outros textos rabínicos antecedentes. Por uma variedade de razões literárias, culturais e políticas, o Talmud da Babilônia, que foi editado ao longo de um período de séculos de 500 a 700 (800? 900?) e.c., obteve predominância sobre a versão de Erets Israel. Por mais de mil anos esse Talmud foi reconhecido como a fonte autorizada da halachá. O estudo do Talmud é o principal assunto da tradicional academia judaica (yeshivá). E como resultado desse estudo, eruditos judeus – que até hoje têm o título de “rabino” – produziram um corpo ainda mais massivo de literatura haláchica. Estes textos podem ser divididos em três categorias principais: Comentários que explicam e interpretam o Talmud e que no processo derivam novas idéias e princípios legais; Códigos ou livros de leis que estabelecem a halachá autorizada (já que o próprio Talmud não apresenta em grande parte de seu conteúdo em uma ordem lógica e quase nunca revela sua opinião sobre a “resposta correta”); E Responsa (t’shuvot), respostas por rabinos a perguntas específicas (she’elot) sobre a prática judaica, submetidas a eles por judeus de suas próprias comunidades ou de outras partes do mundo.

Hoje, quando rabinos ortodoxos ou conservadores falam de halachá como “autoritária”, eles querem dizer que esta literatura é a fonte de quase todas as suas decisões sobre assuntos da vida religiosa judaica: algo em particular é permitido ou proibido? Kosher ou t’reif? Necessário ou opcional? E é aqui onde a Reforma ou o Judaísmo Progressista difere. Para nós, a halachá não determina automaticamente nossa prática religiosa. Para colocar isso de outra forma, os Judeus Reformistas não agem ou recitam ou celebram de uma maneira particular somente porque a Bíblia, o Talmud ou algum outro texto nos diz para fazê-lo. Reservamo-nos o direito de examinar essa regra ou prática, de confrontá-la aos valores progressistas e à visão de mundo através da qual estruturamos nossas vidas. Quando as instituições ou práticas haláchicas tradicionais entram em conflito com esses valores ou não nos falam mais com a voz da santidade, consideramo-nos autorizados a modificá-las ou mesmo rejeitá-las inteiramente. E é por isso que alguns observadores, incluindo não poucos em nosso próprio movimento, descrevem o judaísmo reformista como “não-haláchico”.

Mas eles estão errados. A halachá está intimamente entrelaçada no tecido do Judaísmo Reformista. Ele constrói, colore e molda os padrões de toda a nossa prática religiosa. A estrutura da nossa liturgia – dos nomes dos serviços religiosos (shacharit, minchá, ma’ariv / ar’vit) aos elementos dos rituais (a recitação do Sh’ma, a t’filá, a leitura do Torá, o kadish, as bênçãos [b’rachot] que recitamos, etc) – tudo é de natureza haláchica. Essas práticas estão enraizadas no Talmud e nos textos haláchicos. Nosso Shabat e festividades – kidush e motsi na refeição festiva; havdalá no final do dia; o seder de Pessach; o som do shofar; a suká; a leitura do megilá; o acendimento das velas de Chanucá – todos são haláchicos. Alguns deles já são mencionados na Bíblia, mas sua estrutura e conteúdo são estabelecidos e elaborados na literatura dos rabinos e da lei judaica. É a halachá, o Talmud e os subsequentes códigos e responsas, que criam e estruturam nossos rituais do ciclo de vida, as observâncias pelas quais marcamos o nascimento, a entrada na aliança, a maioridade, o casamento, o divórcio e a morte. Isto é verdade não só para a nossa observância ritual, mas para a nossa prática ética também. Na medida em que os escritos reformistas judaicos procuram aplicar valores particularmente judaicos aos reinos da ética médica, do comércio e da vida política, esses valores devem estar localizados nos textos e na literatura da halachá.

Em outras palavras, o fato é que a halachá está em toda parte no Judaísmo Reformista. De fato, a reforma da vida religiosa judaica dificilmente poderia ser concebida sem ela. Testemunhe a nossa extensa literatura haláchica Reformista, ou seja, os livros que publicamos ao longo dos anos sobre temas de observância ritual ou ética. Dê uma olhada nas notas de rodapé e referências nesses volumes; você verá que seu material é fortemente extraído do Talmud e da chamada literatura ortodoxa “haláchica”. Em especial este é o caso da nossa responsa, respostas rabínicas a perguntas sobre a prática judaica, que os rabinos reformistas têm escrito há duzentos anos. Em particular, o Comitê de  Responsa da Conferência Central dos Rabinos Americanos emitiu mais de 1300 destes documentos desde a sua fundação em 1906. Eles constituem de longe o maior corpo de escritos judaicos Reformistas sobre questões de observância religiosa. Como a Responsa tradicional, cada um deles é uma argumentação, um ensaio destinado a persuadir seu leitor ou leitores de que essa resposta particular é a melhor interpretação disponível das fontes da Torá no que diz respeito à questão. E a argumentação é sempre apoiada em citações e discussões de fontes talmúdicas e haláchicas. Por que isto é assim num movimento presumivelmente “não-haláchico”? Simplesmente porque a halachá  é o depósito de textos e de tradições judaicas que se conectam diretamente ao tema da prática religiosa. Se a questão tem a ver com a ação sagrada, com as ações esperadas dos judeus, com a resposta judaica à pergunta “o que a Torá nos pede para fazer?”, é a literatura haláchica que contém o material, os textos e a argumentação com os quais os judeus tradicionalmente têm trabalhado suas respostas. Isso significa que qualquer resposta judaica autêntica a uma questão de observância deve ser desenvolvida com a ajuda dessa literatura, mesmo que essas respostas difiram das respostas obtidas pelos judeus ortodoxos.

Tudo isso explica por que o movimento reformista continua a produzir sua própria literatura haláchica. Note que esta é uma literatura haláchica reformista. Enquanto consultamos e estudamos os textos tradicionais, os lemos através do filtro dos compromissos intelectuais e éticos do judaísmo progressista. Estes incluem os compromissos com a justiça social, com a abertura ao mundo, com a igualdade de gênero e com a convicção de que a tradição judaica acolhe a inovação e respostas criativas aos desafios da modernidade. É por esta razão que nossa responsa, citando o professor R. Solomon B. Freehof, z’l, é “liberalmente afirmativa”: entendemos a halachá para dizer “sim” a novas idéias, mesmo que não evitemos dizer “não” quando a situação o exige. A halachá progressista reflete a nossa crença de que a lei judaica acolhe a cultura do mundo moderno, não é hostil a ela. Ao mesmo tempo, ao concentrar nossa atenção nas fontes haláchicas de nossa própria prática religiosa, nossa escrita haláchica serve como um lembrete sempre presente de onde viemos, de que a tradição da halachá é o fundamento de tudo o que é autenticamente judaico na prática reformista.

A halachá  é, portanto, um fato central da vida religiosa reformista judaica. E eu acrescentaria que o estudo da halachá e a produção da literatura haláchica reformista são, em um sentido muito real, um dever religioso para nós. O que quero dizer com isso? Simplificando, se não aprendemos halachá  e nos envolvemos em sua interpretação, essas tarefas serão realizadas exclusivamente por outros judeus, os judeus que se aproximam dos textos haláchicos com perspectivas que diferem fortemente da nossa. Eles têm todo o direito de fazer isso, é claro. Mas se os judeus da Reforma não se dedicarem ao seu estudo singular da halachá, então serão aqueles outros judeus, por omissão, os que determinarão o que ela significa e transmite. Halachá, lembre-se, é a forma predominante de literatura judaica e o modo de expressão judaica em questões de observância e prática. Os judeus que não compartilham dos nossos próprios compromissos com os valores progressistas não devem ganhar o monopólio inconteste sobre a interpretação da halachá!

Em vez disso, façamos do estudo da halachá uma prática fixa em nossas próprias comunidades, para que, ao lado de nossos irmãos judeus, possamos continuar a antiga discussão judaica sobre a interpretação da Torá, buscando sempre responder à pergunta: o que é que Deus exige de nós?

Notas

(1)  “two Torahs” no original. O autor usa o sentido hebraico da palavra Torá, que significa “doutrina” ou “ensinamento”. N.T.


O Rabino Mark Washofsky é o Solomon B. Freehof Professor de Lei e Prática Judaicas no HUC-JIR – Instituto Judaico de Religião da Universidade Hebraica de Cincinnati, Ohio


Traduzido do inglês por Raul Gottlieb