Simchat Torá 5782

“A arte é… como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.”

Arte Poética, J. L. Borges

Simchat Torá é a festa que comemora o fim da leitura anual da Torá e o recomeço imediato. É a festa de certa repetição. Talvez seja até a festa da rotina. Porque o cotidiano também merece ser celebrado e consagrado.

Nada mais fácil que celebrar o especial e se sentir especial diante do especial. O desafio se encontra em se sentir especial diante do comum. O judaísmo trabalha essa proposta com as bênçãos cotidianas sobre a água, o olhar e enxergar, e o poder fazer as necessidades fisiológicas básicas.

Todos nos sentimos especiais quando vamos a um novo trabalho, ao encontrarmos pessoas novas ou ao reencontrar amigos que não vemos com frequência. No entanto, a vida se compõe principalmente de inúmeros momentos comuns, nos mesmos locais com as mesmas pessoas, e é lá, nessas circunstâncias, que temos a oportunidade verdadeira de aprofundar nosso ser e nosso modo de relacionamento. Pois é no cotidiano que pode aparecer nossa autêntica identidade, sem máscaras nem produções nem preparos especiais.

Simchat Torá, como Sucot que a antecede, não comemora um evento e sim o mero andar, no deserto num caso, na leitura da Torá no outro.

Justamente por essa razão nos permite ver se diante do mesmo soubemos ser diferentes. Se conseguimos ler de outra forma, interpretar com outros recursos, descobrir novas mensagens no mesmo texto, no mesmo local, nas mesmas pessoas e em nós mesmos.

Simchat Torá como festa da repetição pressupõe como Heráclito, que a segunda vez que formos entrar no mesmo rio já não seremos os mesmos e o rio tampouco.

Borges foi mais sofisticado. Para ele o rio e o próprio Heraclito, como todos nós, somos sempre os mesmos e diferentes ao mesmo tempo. Como tudo. E a arte é a que nos permite vislumbrar esse paradoxo e desfrutar os esforços por elucidá-lo.

Nada se repete de forma idêntica e ao mesmo tempo. Sempre estamos vivendo situações parecidas e conhecidas em certa forma: sempre haverá tristeza, alegria, desejo, conquista, frustração, bondade, malícia, altruísmo, egoísmo. Se não tudo isso junto, ao menos parte disso. Desde quando nascemos até quando morremos. Talvez tudo se repita para ver como crescemos, para nos brindar a oportunidade de crescer.

A Torá se define a si própria no seu fim como um poema, que – diferente da prosa – requer de uma leitura inspirada e criativa que convoca o leitor a mergulhar no texto e a se ver refletido por ele como um espelho. Nesse sentido a Torá nos reflete toda vez que a lemos e nos propõe ver-nos através dela de uma nova forma em cada vez. E descobrir nela sua continuidade sempre renovada.

O movimento reformista gosta especialmente dessa visão, pois resume um de seus pilares: no judaísmo, o mais tradicional é a reforma. A tradição consiste na transformação constante e por ser assim é que ela se torna valiosa e relevante sempre.

Na minha opinião, essa postura não é uma estratégia para garantir a sobrevivência do judaísmo em todos os tempos. Eu acredito que se trata de uma fé em que realmente o judaísmo tem um potencial intrínseco de autotransformação constante, de reforma essencial. Lá radica sua riqueza e sua divindade. Em ser sempre o mesmo e outro ao mesmo tempo. Como o povo e como cada um/a de nós.

Rabino Dr Ruben Sternschein
Congregação Israelita Paulista
São Paulo – Brasil

 

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