Purim
פורים
14 Adar 5783
6-7 de Março de 2023
Como termina a história de Esther? Um olhar pela história de José
Uma característica das narrativas bíblicas é evocar outras histórias do cânone de forma indireta através de repetição de palavras, expressões e temas comuns. Por meio da identificação das similaridades na superfície, essa técnica literária convida o leitor a colocar as histórias em diálogo, possibilitando desvendar novas camadas de sentido para ambas.
A Meguilat Esther é um exemplo magistral desse recurso. Ao longo dos seus 10 capítulos, o leitor atento pode escutar os ecos da história de José tanto nas características gerais do arco narrativo como no uso de expressões específicas presentes nas duas histórias.
A história de Esther e a de José acontecem na diáspora – na Pérsia e no Egito, respectivamente – e descrevem os perigos de uma minoria vivendo sob um poder estrangeiro. Para muitos, as histórias descrevem o “sucesso” na diáspora. José é um “self-made man“, um escravo que galgou até o topo do poder político egípcio. Mordechai e Esther realizam feitos similares, saindo de potenciais vítimas de genocídio para ocupar os cargos políticos mais importantes da Pérsia.
Outro fato que chama a atenção é que Deus não atua no desenrolar dos acontecimentos da História e tampouco é mencionado em ambas narrativas. Num cânone como a Bíblia Hebraica em que Deus faz questão de sair da Sua inércia cósmica para interagir com a humanidade, esse não é um dado desprezível.
Qual é o significado literário da ausência de Deus nessas narrativas? Ora, se Deus não está explicitamente no controle da História, como acontece no livro de Êxodo, quem está? Os dois textos sugerem que, na ausência de Deus, o destino da humanidade está à mercê dos medos, ambições e extravagâncias do poder político e econômico concentrado nas mãos de poucos. Com muita sorte, perspicácia e estratégia é possível sobreviver a essa realidade.
Os reis são, nesse contexto, os senhores do mundo. No início da narrativa de Esther, Achashverosh é apresentado como rei de 127 nações, possivelmente rei de todo o mundo conhecido, que, em meio a banquetes fartos e a sua bebedice permanente, decide sobre o futuro da humanidade. O Achashverosh da história de José é o Faraó, um déspota cuja angústia incessante que tira o seu sono é a perda do seu poder monárquico (Gen 41:8) .
Os dois governantes são diferentes. Achashverosh vive na sua própria realidade, dentro dos muros do palácio, enquanto as decisões sobre o destino do reino são tomadas por outros. A surpresa que ele demonstra ao tomar conhecimento do conteúdo do édito real para exterminar os judeus, que ele mesmo autorizou (Esther 7:5), evidencia a sua alienação de questões fundamentais do reino. O Faraó, em contrapartida, é um exemplo de governante que não confia no seu entorno e possui necessidade de controle. Os sonhos que o atormentam revelam o seu calcanhar de aquiles: o medo de perder o controle sobre uma das riquezas mais importantes do mundo antigo, a comida. Não por acaso, ele executa o seu ministro da agricultura, vulgo padeiro, quem ele não confia.
Essas diferenças respondem pela forma como os heróis inesperados das histórias ascendem às suas posições de poder. José, intuindo o medo do Faraó de se enfraquecer como monarca por uma grave crise econômica/alimentar, oferece a interpretação do sonho que endereça esse temor. Não somente isso, ele oferece imediatamente a solução que apazigua a inquietude do monarca egípcio. Já Achashverosh aliena-se da vida do reinado e é inacessível até mesmo para os membros da corte que não poderiam ter contato com ele, sob pena de morte (Esther 4:11). Sendo assim, Esther e Mordechai precisam agir clandestinamente, sem se comunicarem diretamente, sem revelarem sua relação e suas verdadeiras identidades. No final, as duas narrativas recorrem ao gesto real de passagem do anel para demonstrar a importância de José e Mordechai como braços direito e número dois na hierarquia do poder dos respectivos monarcas.
A duas histórias celebram, em um primeiro olhar, a capacidade de sobrevivência do povo judeu numa diáspora hostil, que passa pela necessidade de se integrar ao poder político local. Sem dúvida, essa é uma mensagem fundamental do texto. No entanto, ela não é a única. Na história de José, ele é capaz de proteger a sua família e alimentá-la durante a fome. Porém, o texto torna-se crítico a ele, na medida em que a população egípcia empobrece ao transferir toda a sua riqueza – dinheiro, gado, terras e, eventualmente, a si mesmos, vendendo-se como escravos – para o Faraó. José é um instrumento para o Faraó acumular mais poder. A sua segurança e a de sua família dependem da sua capacidade em manter o poder do Faraó. O poder de José é frágil, como sugere a continuação da história: “Um novo rei foi entronado no Egito que não conheceu a José […]” (Ex 1:8).
O livro de Esther termina, aparentemente, de forma mais otimista. Os judeus conseguem resistir às explosões de violência contra as suas comunidades e Mordechai, assim como José, ascende a posição de número dois do império. Exceto por uma pequena expressão que nos conduz de volta a história de opressão mais conhecida da Bíblia hebraica. A Meguilat Esther diz, no seu último capítulo, que Achaverosh impôs impostos sobre o seu domínio na terra e nas ilhas (Esther 10:1), ecoando, quase literalmente, o início da repressão aos israelitas no Egito (Ex 1:11). Apesar de não termos a continuação dessa história, o seu autor parece dizer que ele não precisa escrevê-la, porque ela já foi escrita em Êxodo.
Dessa forma, as duas histórias que celebram nosso sucesso de sobrevivência terminam com um aviso claro: em uma sociedade onde muito poder é dado a poucos indivíduos, sem mecanismos de controle, uma leve mudança no humor político pode ter consequências catastróficas. Por isso, a tradição judaica não celebra o poder nem seus governantes. Mas relembra incessantemente as suas histórias como uma ato religioso de vigília.
Rabino Lucca Myara
Congregação Israelita Mineira
Belo Horizonte – Brasil